sábado, 18 de outubro de 2014

A bailarina e sua menina


Do momento em que ela veio ao mundo, já sabia qual seria o ofício, o da dança. Mas vejam, não seria de forma alguma lhe facultado o direito de dançar o que bem quisesse, quando quisesse. Bailarina clássica, de sapatilha e todos os outros adereços que lhe compunham um visual inequívoco quanto ao que era, só podia dançar uma única música. E pior, só podia dançar quando lhe concedessem permissão para tanto. Não para sua alegria, mas para ventura de outras pessoas, que logo se enjoavam de seu bailado limitado pelo espaço de uma caixa de música e buscavam diversões outras enquanto lhe esqueciam  por dias, meses e as vezes, anos, em cima de uma penteadeira ou no fundo de uma gaveta.

Quando seu criador a fez, certamente imaginou-a fazendo a alegria de alguma criança, uma jovem talvez, que ao vê-la bailando ao som de "Pour Elise" se emocionaria e talvez com os olhos marejados desejaria ela mesma ser uma bailarina alçando voos simétricos e coordenados nos braços de seu parceiro pelos palcos estrelados do mundo.

Mas esqueceu-se ele, seu criador, que toda criatura limitada a fazer sempre a mesma coisa, quando lhe ordenam, não pode, mesmo que consciência nela não haja, ser feliz. Pois a felicidade reside no poder fazer o que se quer, quando se quer e para quem se quer. A dança presa, limitada a um minúsculo espaço, se torna atrofiada, triste, melancólica, pálido borrão do que poderia ter sido, movimentos mecânicos que se tornam mero contraponto ao que se espera da arte, que ela seja livre, fluida, inesperada e por este motivo, surpreendente.

Mas ela dançava  sempre que solicitada. Sempre indo pelo mesmo trilho previamente traçado. Não aguenta mais "Pour Elise", mas desenvolveu uma resignação que lhe mantém se não viva, pois é apenas uma boneca de caixa de música, dançante, por assim dizer. E dançante, ela segue, e talvez uma pontinha de orgulho ela sinta ao perceber que aquela senhora que de tempos em tempos da corda aos seus movimentos é aquela mesma menina que muito tempo atrás recebeu das mãos de outra senhora, (que ela nunca mais viu), provavelmente sua mãe, a caixinha em que ela repousa e ela percebeu no exato momento em que seus olhos se cruzaram, um brilho diferente nos olhos da garota, um misto de admiração e felicidade genuína, um sorriso leve e doce, que a senhora já não consegue mais reviver quando abre a caixa.

E para sua estupefação, percebe que compartilham apenas a mesma resignação surda e silenciosa. Ambas ao se fitarem, em sua insuspeita cumplicidade tem apenas resignação a oferecer uma a outra, nada mais. E ela, como lhe cabe, dança.

Mas um dia quando sua dona abriu novamente a caixinha, ela enquanto dançava se pôs a recordar de sua vida e da vida de sua dona. Sim, quando ela parar nas mãos miúdas daquela menina de olhos azuis imensos, ela viu a felicidade e se congratulou  por ter uma dona tão linda. E quase todos os dias ela dançava e dançava e dançava, quase até a exaustão ela dançava sem reclamar pois a menina era feliz e isso já lhe era suficiente, era a felicidade da menina, a sua felicidade possível, no mar de indignação por ser apenas um ser tolhido aos mesmos movimentos eternamente. Era aquela menina, e apenas aquela, que a mantinha "viva".

Naquele mesmo dia, ela lembrou -se que outra meninas e mesmo meninos a tinham pego nas mãos. Algumas eram puro desprezo por sua dança, outras eram como que hipnotizadas por seus movimentos. Mas o que lhe importava mesmo era a "sua menina" e a "sua menina" ela percebia, ia crescendo e os intervalos entre suas danças eram cada vez maiores, até que ela percebeu que sua menina tivera a sua própria menina e lhe era muito mais importante cuidar dela do que limpar e dar corda a uma simples boneca limitada a um circuito de dor e tristeza embaldo por "Pour Elise". E a sua "vida" ficou quase que insuportável.

Mas de uns anos para cá, até flagra-se neste dia especifico ao que me refiro, ela percebeu que sua menina agora era uma senhora. Seus olhos permaneciam imensos e azuis, um Pacífico oceano que ela ainda amava contemplar. Mas a menina, como eu acabei de dizer, era agora uma senhora e uma senhora que tossia, as vezes falava sozinha e que agora morava em uma casa diferente da que sempre morou. Com outras senhoras, outra penteadeira e aquela menina que era amenina dela, as vezes ia apressadamente visita-la, sem tempo para sua dança. Sempre corrida, ela mesmo com uma menina e um menino a tiracolo com quem ela sempre gritava enquanto falava em um telefone, como era mesmo o nome daquilo? Celular... Isso, sempre falando em um celular, enquanto a minha menina, que agora era uma senhora, tentava lhe obter atenção, sem sucesso.

E voltando a este dia especifico de dois parágrafos atras, foi um lindo dia. Começou ensolarado mas ali pelas 14 horas uma chuvinha caiu. E a sua menina, agora senhora, a pegou. E ela intuiu que seria a última vez. Não sabe bem explicar porque mas intuiu que assim seria. E então, algo aconteceu. Algo que só pode acontecer no mundo do fantástico. Naquele dia, ela não dançou  "Pour Elise". Ela dançou "A morte do Cisne". E foi lindo. Ela se projetou da caixinha, como num passe de mágica, ela estava no quarto com sua menina, que agora havia voltado também magicamente a ser sua menina,  e ambas dançavam e celebravam a vida através da morte, e perceberam ambas que estavam prontas para a única redenção possível para os abandonados: a sua própria morte. E depois de muito dançarem, exaustas se sentaram e se abraçaram e mutuamente se confortaram e ela percebeu que sua menina estando pronta, lentamente fechos seus lindos olhos azuis, e aquele pacífico Oceano nunca mais verteria lágrimas de alegria ou tristeza, pois já não havia mais nada para se sentir.

E ela também se sentia pronta. Pronta para enfim para de dançar. Descançar, no fundo de uma gaveta, esquecer "Pour Elise" e jamais amaldiçoaria novamente Beethoven por ter escrito tal peça, embora no fundo ela soubesse que culpa alguma havia nele e sim no seu criador por ter escolhido uma única música para que ela dançasse.

E quando vieram enterrar sua menina, surpresa das surpresas. Ela havia pedido apenas uma coisa para seu pós morte: Que colocassem  sua caixinha com sua bonequinha em seu caixão, para que juntas fossem descansar. Não coube em si de felicidade, mas a menina de sua menina, antes que a colocassem junto a sua dona, percebeu que a sua própria menina, que era uma cópia perfeita de sua mãe quando menina, chorava por querer a caixinha para si. E quando a entregaram para a menina neta da sua menina, ela percebeu o mesmo encanto, o mesmo sorriso, as mesmas mãos miúdas e se sentiu feliz. E percebeu que dançaria "Por Elise" para ela quantas vezes se fizessem necessárias. E sabia no seu íntimo de boneca que não haveria algo que deixaria a sua legítima e primeira dona mais feliz.

E no enterro de sua menina, quando a neta dela abriu a caixinha e deu corda e todos a viram dançar por seu trilho limitado, ela se sentiu a maior bailarina de todos os tempos e finalmente se descobriu feliz!

É isso

Ouvindo: Maria Callas

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