segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A bailarina e sua menina III


Houve uma noite, menina minha, em que você adormeceu enquanto eu dançava. E minha caixa, minha eterna morada, ficou aberta. E eu te vi ali, dormindo, entregue ao seu sono mais profundo e então eu te observei com mais atenção. Teu sono era quieto, sereno, um respirar lento e compassado entremeado por suaves movimentos em que teu corpo buscava um conforto maior em tua grande cama e entre teus alvos lençóis eu percebi que você, minha doce menina, sonhava.

A mim, você sabe bem, uma simples boneca com corpo de porcelana, frágil, que uma simples queda de uma altura apenas razoável pode esfacelar, não me é permitido sonhar. Sim, meu encanto de menina, eu não posso sonhar. Só me é permitido nesta vida, ao qual eu chamo de "quase existência", já que tantas coisas me são privadas, dançar. E sabe, menina, a minha grande sorte, o meu motivo maior de alegria, é saber que é você quem abrirá a caixinha que me serve de envólucro e são suas delicadas mãozinhas que irão girar o mecanismo que me fará graciosamente dançar para ti. Há! Minha menina... O que pode ser melhor do que dançar para ti? Ainda que seja a mesma música o tempo todo. Se não te cansas de ver, eu não me canso de dançar e para ti dançarei até o momento em que não mais quiseres que eu dançe.

Mas agora, com a casa mergulhada em um silêncio profundo, e em uma escuridão que em teu quarto é quebrada pelo prateado da Lua que insiste em entrar pelas frestas de tua janela, formando um quadro tão lindo e comovente que me levaria as lágrimas se lágrimas tivesse eu para chorar, eu confesso, trazendo junto com a confissão um pedido de desculpas, pois minha devoção por ti não deveria me permitir sentir tal coisa, sinto inveja de ti. Inveja de tua capacidade de sonhar, de desligar-se deste mundo onde nem tudo é rosa como os teus vestidos e nem tão imaculadamente branco como teus lindos sapatinhos de verniz que em festas ostentas tão lindamente pela casa, imagem clássica de uma inocência que ainda tens e jamais deverias perder.

Eu queria, apenas por uma noite, ter a possibilidade de como ti, sonhar. Desligar minha cabeça de porcelana por fora e oca por dentro, mas tão cheia de emoções (sou uma bailarina, tenho que ter emoções), e me entregar aos sonhos sejam eles quais forem. Poderia sonhar que estou fora da caixa, brilhando em alguma companhia de dança, ou quem sabe, eu fosse uma executiva bem sucedida e não tivesse termpo e nem vontade de saber nada sobre dança clássica.

O que importa no sonho, menina bela e plácida, não é o sonho em si e sim a capacidade de te-lo. Nos sonhos, podemos voar, podemos correr mais rápido que o Guepardo, e no meu sonho, eu poderia fazer qualquer uma dessas coisas e muitas outras porque no sonho não existe limite. E sabe o que pensei agora? Eu poderia até ser uma outra menina, que contigo brincaria todos os dias e juntas cresceríamos e tantas coisas poderiamos fazer em nossa existência ainda que esta existência tivesse a duração efêmera de um sonho, e logo depois eu voltasse a ser apenas a boneca que dança para ti, a bailarina de porcelana e vestido rupa de ballet que em um delimitado e pequeno espaço faz volteios e rodopios para o teu deleite,

Já é madrugada agora, minha menina, e esta esfriando. Sua mãe rompe pelo quarto de forma suave, abrindo a porta com cuidado, para não tira-la de seu sono, de seu sonho, e sobre teu corpo coloca um cobertor que envolve e aquece e te deixa ainda mais confortável e mesmo dormindo, eu vejo que você sorri.

Sua mãe então caminha até a comoda onde me mantens e fecha minha caixa. Não dormirei, e tão pouco sonharei, mas a certeza de que amanhã abrirás novamente este recipiente e para ti poderei dançar, me enche de paz. E o coração que não tenho, torna-se repleto  ao ponto de transbordar de amor. Até amanhã, menina.

É isso.

Ouvindo: Madredeus

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