quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A Bailarina e Sua Menina e Mais Duas Meninas Que se Achegam.



Eu já tive, no passado, outra menina. Sim, ela linda como minha atual  menina, sendo inclusive, muito parecida com ela. Lembro de quando pela primeira vez, nossos olhos se cruzaram. Os dela, incrivelmente azuis, quase dois oceanos condensados em um olhar, os meus da mais fina porcelana, também são lindos, porém sem vida. Porém me foi permitido ver a tudo e todos o tempo todo. Todos que cruzassem o caminho da minha menina ou das minhas meninas, quando eu com elas estivesse. Mas é da minha primeira menina que eu vou falar hoje.

Dançar sempre foi a minha vida. Ou o que eu posso entender como vida. Mas não reclamo. E não reclamo porque tive a felicidade de ter como minha primeira dona uma menina que adorava me ver dançar. E eu dançava com felicidade, com graça, querendo a sua aprovação a cada vez que a caixinha que tenho como lar era aberta. e a cada nova abertura, por entre anos e anos fui percebendo que minha menina ficava diferente.

A princípio diferenças sutis. Minha menina uma vez abriu a caixa e lhe faltava um de seus alvos dentinhos. Fiquei triste e minha dança me pareceu mais lenta, sem vontade. Quando ela abriu novamente, eram dois, os dentes a faltar, mas minha menina estava curiosamente feliz, então intui ser algo natural aos humanos perderem dentes e continuei a minha dança. Depois de um tempo, seus dentes haviam nascidos novamente e ela estava mais sorridente do que nunca e como isso me alegrou!!! Inspirada por mim (ao menos eu quero crer e essa crença me conforta), minha menina pediu a sua mãe uma roupa muito parecida coma  minha e também sapatilhas, e se tornou ela também uma bailarina, a bailarina mais linda que já existiu sobre a Terra.

Logo o seu quarto ganhou uma barra dessas que bailarinas usam para se exercitar e treinar os seus passos e meu orgulho maior foi poder assistir a dezenas, centenas, milhares de seus ensaios. E a cada novo ensaio, eu percebia que minha menina ganhava estatura, e quanto mais alta, mais a sua leveza e delicadeza ao dançar se acentuava.  Como ficava linda a minha menina de sapatilha e vestido de bailarina!!! E percebi que seu vigor físico se acentuava tanto que se me dissessem que minha menina poderia voar, eu acreditaria sem pestanejar.

Um dia minha menina veio para o seu quarto mas não para ensaiar. Ela trouxe uma visita consigo, um rapaz belo e jovem. Vigoroso como ela. As luzes se apagaram, e não pude perceber muito mais que uma movimentação frenética em sua cama acompanhada de sons inconstantes e desconexos que confesso, para mim foram totalmente novos. Minha menina tinha então 16 anos e depois deste dia, nunca mais colocou sua sapatilha de ponta, nunca mais bailou para mim ou para qualquer outra pessoa. Minha menina não sabia, mas logo saberia, que naquele dia, ela concebeu a outra menina, que vem a ser a mãe da minha atual menina.

Mas a minha menina original perdeu o sorriso sempre presente. Ela usava aparelhos para aperfeiçoa-lo ainda mais e depois deste acontecimento mal abria a boca. Se a abria, era apenas para chorar, e ficava horas comigo ao seu lado e me punha para dançar enquanto ela abraçada a uma almofada apenas soluçava seu pranto amargo. E eu, dançando, observando a tudo sem poder no entanto poder consola-la, abraça-la ou oferecer qualquer outro tipo de conforto que não fosse o som do meu piano e minha dança incessante.

Minha menina teve a sua menina, mas para mim, ainda era uma criança só que agora com outra em seus braços. E acompanhei minha menina em suas noites maldormidas, pois o bercinho da sua menina foi colocado ao lado de sua própria cama e minha menina era constantemente acordada pelo choro de sua pequena que queria comer, que tinha dor de barriga, que não entendia este mundo louco mundo ao qual aportou  sem nem saber bem o porque.

Minha doce menina se tornou melancólica, sempre a suspirar, sempre lamentando-se de sua decisão de entregar-se a quem não lhe honrou tão preciosa entrega mas desenvolveu um amor imenso por sua menina. e ela, a sua menina, tornou-se sua razão de viver. Minha menina, (sim ela sempre será minha menina) criou a sua própria menina e a protegeu de todas as formas que pode. Não é fácil, ela aprendeu, proteger os filhos, não é fácil faze-los entender que tudo o que passam de ruim os pais, não desejam eles para seus filhos. Filhos precisam muitas vezes aprender sozinhos, mas nem sempre querem aprender, antes, preferem construir suas fantasias, seus mundos ideais que quase sempre os fazem sofrer até que por si mesmo aprendam a caminhar nos caminhos menos cruéis que o mundo tem  a oferecer.

A menina  de minha menina, herdou da mãe a sapatilha de ponta, a roupa clássica de bailarina e também aprendeu a usar a barra. Não teve a sua própria menina tão cedo quanto a minha menina, a teve, mas também não se tornou bailarina assim como sua mãe não foi. Minha atual menina começa agora os primeiros passos e como sua mãe e sua avó adora me ter por perto para vê-la dançar, sorrindo inocente, gritando de felicidade e logo, seus primeiros dentes cairão também, assim como caem os de todas as crianças. Minha dona atual tem olhos verdes, duas amazônias inteiras no olhar e um futuro totalmente aberto a sua frente. Só quero que ela dance até não aguentar mais, só quero que ela seja feliz. As vezes a minha primeira menina, hoje uma senhora, uma linda senhora diga-se de passagem, coloca suas sapatilhas de ponta e junto com a sua neta, minha atual menina, brinca de dançar, e quando ela brinca, se torna minha menina outra vez e eu danço com elas ainda mais vigorosamente.

Sei que um dia, minha menina original vai me deixar para sempre, mas não quero pensar neste dia, quero viver como se o amanhã fosse um contínuo hoje fazendo com que todos os dias sejam um único momento, pois perder minha menina original me trará uma tristeza que mal consigo imaginar que dirá, expressar. Hoje é um dia em que sei que as três meninas estarão reunidas e com suas roupas de balé brincaram de dançar. A dança é a expressão mais pura a qual um ser humano pode ter. Através dela, ele pode mostrar dor, alegria, tristeza, enfim, todos os sentimentos aos quais um humano esta propenso a sentir.

Minhas meninas me fazem feliz apenas por existirem. Não preciso de mais nada além de seus sorrisos, suas histórias, e sei que o futuro é apenas uma louca abstração pois é o presente que me preenche. Vou ali dançar e já volto.

É isso

Ouvindo: Madredeus

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