terça-feira, 14 de novembro de 2017

Uma Senhora, Muitas Latinhas, Uma Enorme Miséria, A Dor da Indiferença



Ontem foi dia de meeting, uma palavra empolada importada da gringa que significa reunião. No meio dos corretores de imóveis no entanto, meeting da uma envernizada em algo que deveria ser simples, rápido e objetivo. Dai o lance fica sofisticado, demorado e completamente dispersivo.

Mas enfim, não é do meeting que eu quero falar. Ok, foi legal, foi no Allianz Parque e tals, foi um meeting da maior incorporadora de capital aberto do país, tirei fotos do campo, no campo, uma estrutura impressionante, estacionamento pago, buffet classe A, enfim, tudo do jeito que corretores gostam. Apresentação correta (arrastada como todo santo meeting, mas faz parte), premiação show de bola com direito a viagem para ver a copa da Russia in loco, o fino.

Acontece que eu tinha que voltar para Alphaville e decidi sair um pouco antes do final do meeting (há! ganhei uma bola maneira também, alias, todos ganharam como brinde) e após sair do estacionamento e pegar o caminho para a Castelo Branco, em uma das pontes da Marginal, que não me lembro o nome, algo me impactou. Sim, eu sou bem trouxa, pra sair de um meeting onde tudo foi incrível e diga-se de passagem estava indo para um churrasco de outro incorporador do qual sou gestor e me impactar com o que vou relatar. Mas me impactei.

Parado nesta ponte, na alça de acesso para a Marginal, vi ao longe uma senhora que seguia caminho contrário ao meu sentido mas andava extremamente devagar. Quando ela se aproximou, percebi um saco, enorme, desses de farinha de 50k abarrotado até a boca de latinhas que ela deveria estar levando para a reciclagem. Abarrotado não é figura de linguagem, estava transbordando e a senhora se curvava, quase se arrastando ao peso de seu fardo. Eu parado como estava e ela passou por mim. Janela aberta pensei em dar um boa tarde, mas tive medo de ser ridículo, afinal a tarde dela não estava definitivamente nada boa com um Sol inclemente incidindo em sua cabeça e aquele peso medonho em seus ombros. Me calei.

Voltei na hora meus pensamentos para o meeting. Viajar para a Rússia, vender muito apartamentos, ganhar muitos dinheiros em comissões, tudo isso é tão legal né? Chegar em casa, ter um belo jantar, um café da manhã no dia seguinte, andar de carro para cima e para baixo, conforto, em outras palavras.


O que me incomoda é a desconexão que tudo isso causa. Uma desconexão com os que precisam apenas do básico e não tem. Não ao menos todos os dias. Pessoas que tem 50 anos e parecem ter 70 pelo peso dos dias. Senhoras que carregam latinhas ou o que mais for porque precisam comer. E veja, falo em comer, pois não existe espaço para vaidade em roupas, maquiagens, sapatos, nada. São roupas maiores ou menores do que deveriam ser, sapatos idem, gastos, com buracos na sola. A comida, é pouco mais que uma ração daquelas que o Alcaide de São Paulo quer ofertar aos miseráveis de sua cidade em um surto de idiotice de alguém que eu ainda tenho a boa vontade de defender, mas tá gastando todo crédito já.

Vivemos em um mundo em que os pobres são invisíveis, não queremos vê-los, não queremos nos incomodar com o elefante na sala, não queremos nos desgastar com essas coisas. Se temos nosso carro, nossa possibilidade de viajar seja para onde for, (ainda mais se for a Russia pra ver copa do mundo) é porque trabalhamos não é mesmo? Damos duro, nos esforçamos. Essa senhora que se esforce mais, que corra atrás de seus objetivos, que se engaje em algum programa social e saia do barraco que mora. Somos indiferentes e nossa indiferença, gostemos ou não disso, é parte do problema em que vive essa senhora.

Vemos o nosso lado e isso nos basta. Fechamos os olhos para os desvalidos, os chamamos de bêbados, drogados e não queremos saber o que os levou até essa condição pois é melhor e nos conforta achar que as pessoas estão na merda por culpa delas mesmas. Aquelas tantas latinhas que talvez mal deem para a senhora comprar o jantar me cortaram o coração. Elas vem acompanhadas de uma enorme indiferença, de uma dor que era clara, a dor física neste caso e também da dor da indiferença, de ser um fantasma andando em uma das vias mais movimentadas de São Paulo.

Aquela senhora não é um fantasma e nem precisa ir a Russia ver um jogo da copa do mundo. Ela só precisa de atenção, ajuda, de um prefeito que a trate como indivíduo, não como um coletivo que deve comer ração e se calar. Deveríamos dar voz aquela senhora, deveríamos lhe dar acalanto, tranquilidade para viver seus últimos dias nesta planeta corrompido que vivemos.

Uma senhora, muitas latinhas, uma enorme miséria e a dor da indiferença, tudo isso é o retrato de uma cidade cosmopolita como São Paulo que massacra os seus desvalidos sem dó nem piedade, mas é também o retrato de cada um de nós que finge não ver essas pessoas. Triste.

É isso

Ouvindo: Coldplay

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