quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A bailarina e sua menina II


É sempre o mesmo tema. Sempre "Pour Elise", sempre os mesmos passos e rodopios e volteios. Mecânica e absolutamente sem graça se tornou o que faço e bem vocês sabem, eu tenho uma menina para agradar. Como eu posso agrada-la assim? No que me tornei? Uma bailarina presa a uma caixa que toca sempre a mesma música e nenhuma variação me é permitida? Será que é por este motivo que a menina, a minha menina, abre cada vez menos a caixa e quando a abre logo a fecha? Não pode ser por nenhum outro motivo, eu bem sei.

Quem me criou acha que me "produziu". Não percebeu que mais que um brinquedo, sou uma artista. Eu danço, eu sei dançar o sei como poucas. Eu poderia tomar corpo e tamanho e ir direto para qualquer palco de qualquer parte do mundo e bailar e bailar e bailar. Sem hora para acabar. Ser aplaudida efusivamente, ver as pessoas pedindo "bis". Sim, eu seria capaz de fazer isso e muito mais se não fosse apenas um brinquedo boboca que dança sempre a mesma música.

Mas se eu tomasse corpo e forma de bailarina de verdade, não ia querer palco algum além do quarto da minha menina. Todas as manhãs e todas as noites eu pensaria em uma nova coreografia para fazer os seus olhos brilharem de felicidade e suas mãos tão delicadas se unirem em aplausos pela minha performance. Eu seria feliz ao lado de minha menina e ela seria igualmente feliz ao meu lado.

Minha menina na verdade está crescendo e ao contrário de Pinóquio, eu não tenho uma fada para me transformar em uma bailarina de verdade e vejam que irônia, eu não minto, sou uma boa bailarina e meu delicado corpo de porcelana em nada lembra o rude corpo de madeira daquele boneco estúpido. Sou muito mais inteligente do que ele jamais será e dentro de mim, ao contrário do que imaginam, não existe um oco, ou algum material para preenche-lo. Existe amor, muito amor pela minha menina que a cada dia fica maior e que a cada vez que se lembra de mim e abre a minha caixa me tirando da escuridão, me surpreende com seu tamanho e beleza.

Hoje, no entanto é um dia especialmente triste para mim. Minha menina vai ganhar uma irmã, sua mãe veio comunica-la em seu quarto hoje cedo. Elas estão felizes, mas eu, na verdade estou chorando, porque a primeira coisa que minha menina disse foi que vai me presentear para sua irmãzinha. Sim, eu não serei mais da minha menina e isso me entristece sobremaneira, uma vez que em meus planos eu seria para semper de minha menina e não seria repassada nem a sua irmã e nem a ninguém. Seriamos inseparáveis e eu a veria ter os seus filhos e então, quando ela moresse, eu também me quebraria.

Porém não será assim. E fico me perguntando o que eu poss ter feito de errado para mninha menina querer me dar a outra pessoa. Eu não a amei o suficiente? Não soube expressar este amor por ser uma boneca de porcelana que dança? Para amar a minha menina e ser percebida por ela eu teria que ser como ela, de carne e osso? Não... Isso não garantiria o amor de minha menina. Nada, na verdade garante que uma pessoa vai amar a outra e é por esta razão que aprendi que temos que amar de graça, sem esperar reciprocidade, sem esperar consideração, sem esperar avisos para ausências, palavras de carinho, ternura, nada. Amar é algo que se faz porque se quer.

E quando amamos (e isto vale para bailarinas de porcelana e para seres humanos), temos que dizer, temos que expressar, temos que gritar ao mundo este amor, ainda que o que vá se receber em troca seja negativo, seja indiferença, seja ser repassado a outra pessoa. Amor é assim: Se dá não para se receber, mas para não se morrer afogado nele, para que ele não nos engolfe e para que ele seja canalizado a pessoa certa que ai sim poderá fazer com ele o que quiser.

Eu sei que minha menina nem sabe que eu existo no sentido de pensar, sentir e sobretudo viver para alegra-la. Para ela, sou apenas um brinquedo que sua vovó lhe deu e, bem, talvez eu não existisse se não tivesse fitado os seus olhos e ela os meus no momento em que ela abriu a caixinha. Sendo sincera, até a minha menina, eu não me percebia como um ser pensante e tenho certeza absoulta que isso tem a ver com a força do amor, porque quando vi minha menina pela primeira vez, eu tive certeza que estava irremediavelmente presa pelo amor que ela me despertou e então eu dançei e dançei de uma forma tão sublime que minha menina sorria e sorria e seu sorriso me fez ver que pela primeira eu tive valia.

Acontece que o tempo passa e os valores mudam e as necessidades idem e minha menina não precisa mais de mim para sorrir. Amor não cultivado de ambas as partes, amor que é unilateral mas ainda sim é mais forte que o carvalho. Amor que entende a distância e a falta de interesse do outro, amor que só pensa em fazer o outro feliz e dançar para ela quantas vezes forem necessárias e sempre como se fosse a primeira vez.

A minha menina não precisa mais de mim, desconfio que nunca tenha precisado, mas eu, ainda sim, estarei sempre pronta para dançar por ela.

É isso.

Ouvindo:Marcelo Jeneci

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