Eu me lembro que foi perto do meu aniversário, mas é impossível lembrar o dia exato. Lembro que o ginásio estava lotado, então deveria ser final. Lembro do uniforme todo azul, camisa, bermuda, mas não lembro a cor do tênis. As meias eram brancas, isso é certo. Minha mãe estava entre as jogadoras e claramente foi este o motivo de eu ir ter ido assistir essa partida de handebol.
Minha mãe era a goleira do time e sem puxar o saco de quem nem saco tinha, ela fechou o gol. O uniforme tinha a inscrição do hospital em que ela trabalhava na época, a Santa Casa de Guarulhos, hospital em que eu vim ao mundo. A inscrição era em branco, então branco e azul combinavam e o uniforme era bem bonito.
As mulheres eram extremamente competitivas, gritavam, se pegavam em quadra, um jogo que em vários momentos tomou o caminho da violência, mas que tinha algo de poético pois eu tinha no máximo 6 anos, estávamos falando portando de 1978, uma época em que mulheres não tinham muitos campeonatos para chamarem de seus e o papel da mulher era mais a de torcedora do time do marido ou de demonstrar uma ignorância cordata sobre esportes em geral.
Acontece que aquelas mulheres ali se recusaram a isso. Foram jogar aquela partida, que foi jogada em uma manhã de Domingo determinadas a ganhar. Elas estavam a ponto de saírem no braço se fosse preciso havia uma tenção no ar e o público que era majoritariamente feminino se comportava como se fossem um bando de homens, ou melhor, de hooligans, gritando as palavras mais pérfidas como se fossem incentivos para as jogadoras que agora me lembro pertenciam a Santa Casa, time da minha mãe, e ao Hospital Brasil, outro hospital de Guarulhos que eu acho que nem existe mais.
Minha mãe, como eu disse, fechou o gol. Não lembro obviamente o resultado, mas lembro que o time dela ganhou e ela claramente foi o destaque do jogo. Lembro também que uma jogadora adversária lhe deu uma cotovelada no rosto que ficou roxo por dias e ela nem ligou, no calor do jogo foi sentir dor apenas a noite em casa, onde colocou gelo aos montes para baixar o inchaço. Ali, ela foi minha heroína e ali eu decidi que quando fosse jogar futebol novamente jogaria no gol.
Desde então, se jogo futebol é apenas e tão somente no gol, embora não tenha conseguido jamais realizar uma partida tão perfeita quanto a da minha mãe naquela dia. Não, eu não lembro o resultado, mas me lembro da vibração dela, da alegria genuína por ter ajudado a conquistar um troféu que no final ninguém sabia nem pra onde levar, se para o hospital, se para a casa de alguém, mas lembro que houve uma cerimonia de premiação e chamaram Alexandrina Maria para receber sua medalha e essa sim, ela levou pra casa.
Anos depois, muitos anos depois, eu vi que ela ainda tinha e em lugar especial o seu prêmio guardado e me lembro que ela ainda sentia imenso orgulho de ter ganho aquela partida e de ter sido claramente a melhor em quadra. Acho Handebol um esporte chato para um caralho, mas quando fecho os olhos e lembro de minha mãe se agigantando embaixo das traves, tomando pouquíssimos gols e com raiva de cada um que levou ao mesmo tempo que vibrava com cada defesa, eu me lembro que a cada defesa, a cada boa jogada ela me procurava com os olhos e sorria. E eu me lembro desse sorriso que era um misto de alegria e orgulho.
Era fim de ano, era perto do meu aniversário. Era um tempo em que eu torcia pelo Brasil na Copa da Argentina e de tão inocente, ao ver a noite, a reprise de um jogo que havia acontecido pela manhã, eu tive a esperança que o resultado fosse outro. Minha mãe me explicou que não era possível. Minha mãe me explicou muitas coisas. Ela era a pessoa mais inteligente e culta que eu conheci. E era a mais tímida também.
Eu sou culto. E tímido, tudo o que eu tenho de bom, vem dela. Sinto sua falta, queria que houvesse apenas mais um jogo de Handebol com ela no gol para eu poder ver. Daria minha vida pra que isso acontecesse, para que a cada defesa, ela me procurasse com seu olhar e sorrisse para mim fazendo sinal de positivo com o polegar. Não vai acontecer, eu sei, assim como eu agora seu que um jogo que aconteceu pela manhã não mudará seu resultado ainda que for reprisado todos os dias eternamente.
Eu agradeço a Deus pela experiência que passei.
É isso.
Ouvindo: Agridoce
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